A gente acorda cansado. Trabalha com sono. Vive com pressa. Dorme com notificações. E ainda assim, seguimos criando.
Seguimos escrevendo, fotografando, editando, desenhando, gravando, ensinando, costurando, pensando. Mesmo quando o corpo pede pausa, mesmo quando a mente está sobrecarregada, mesmo quando tudo em volta nos diz que o ideal seria parar.
Por quê?
Neste texto, a gente tenta não responder — mas acompanhar essa pergunta. Um convite à escuta, não ao desempenho. Um ensaio sobre o impulso de criar mesmo em tempos de exaustão.
Criar não é só produzir
A lógica produtiva tomou conta até da criatividade. Criar virou sinônimo de entregar. Ter portfólio. Postar conteúdo. Ter engajamento. Monetizar.
Mas a criação é anterior a tudo isso. Criar é organizar o caos, nomear o que não tem nome, costurar silêncio e sentido. É se localizar no mundo, mesmo sem mapa. Quando tudo parece instável, criar pode ser uma forma de permanecer.
Criar é também uma tentativa de continuar — sem precisar saber exatamente para onde.
A exaustão também é matéria-prima
A escritora Olivia Laing, no livro O passeio do artista, fala sobre como muitos artistas criaram não apesar do sofrimento, mas a partir dele. Não no sentido de romantizar o cansaço, mas de reconhecer que a dor, o tédio, a falha, o cansaço também falam. E podem virar som, imagem, texto, gesto.
A criação, nesses casos, não é cura. É tradução. Um modo de fazer com que aquilo que sufoca encontre uma forma de sair.
Mesmo que seja por uma fresta.
O risco de transformar tudo em entrega
Mas é preciso cuidado. Nem toda criação precisa virar conteúdo. Nem toda ideia precisa performar. O excesso de visibilidade pode matar o prazer de criar por criar.
Você não precisa mostrar tudo. Nem explicar. Nem estar pronto. Existe potência naquilo que você faz só pra você. Existe liberdade em escrever algo que ninguém vai ler. Em fotografar sem postar. Em desenhar sem vender. Em pensar sem publicar.
Criar também é um espaço de intimidade — e ela não precisa de palco.
Criação como gesto de cuidado
Quando tudo em volta parece pedir que a gente produza mais, renda mais, acelere mais, criar pode ser um gesto de desaceleração.
Escrever um parágrafo sem pensar no algoritmo. Pintar um quadro sem pensar na exposição. Tocar uma música só porque ela te faz companhia.
Criar como quem faz chá: devagar, com intenção, pra cuidar.
E quando não dá?
Também precisamos normalizar o silêncio criativo. O hiato. A pausa. Nem todo dia é dia de criar — e tudo bem.
Às vezes o descanso é o que sustenta o próximo ciclo. Às vezes, não é hora de parir ideias, mas de nutrir terreno. Às vezes, a gente só precisa existir sem transformar nada em projeto.
A criação pede espaço. E o espaço nasce do não fazer.
A gente segue criando porque precisa. Porque, no fundo, criar é uma forma de escutar a vida — mesmo quando ela sussurra. Porque criar é uma forma de se manter inteiro em um mundo que nos puxa pra todo lado.
Não precisa ser bonito. Nem inédito. Nem vendável. Só precisa ser verdadeiro.
E, às vezes, isso basta.

